O que nos diriam hoje Carl Sagan e Viktor Frankl? 

22-01-2022

Quando o olhar e a vontade, humanizam a própria existência!

Pale Blue Dot




Quando o olhar e a vontade, humanizam a própria existência (1)!



O que é nos diriam hoje Carl Sagan e Viktor Frankl?

O pálido ponto azul é o título de uma fotografia do planeta terra captada no dia 14 de fevereiro de 1990 pela sonda Voyager 1, que anos mais tarde dará nome a um livro de Carl Sagan (2).

A distância a que a foto foi captada, era de seis bilhões de quilómetros (40,5 AU, unidade astronómica 150 mi de km).

A Voyager 1 foi lançada em setembro de 1977 e ao deixar o Sistema Solar recebeu ordens para virar a sua câmera e tirar uma última foto da Terra no meio da vastidão espacial, a pedido do astrónomo e escritor Carl Sagan. Cerca de 34 minutos depois de captar a imagem, as câmaras da Voyager 1 desligaram-se para sempre.

Foi a fotografia mais distante da Terra que se conseguiu tirar.

O principal objetivo da sonda Voyager 1 era explorar Júpiter e Saturno. Inicialmente esperava-se que a sonda funcionasse somente até encontrar Saturno em 1980.

A foto captada tinha pouco valor científico devido à baixa resolução da foto, contudo o legado da fotografia contribuiu para um reconhecimento profundo da importância da Terra, da sua fragilidade e singularidade.

A meio da noite e ao procurar driblar uma insónia, olhei as estrelas e lá no meio alguns astros e senti-me invadida por um misto de maravilha e gratidão pela imensidão do universo por aqueles pontos pequenos de luz. Soube que Sagan ao olhar para essa mesma imensidão, perguntava-se como seria ver o nosso planeta terra, a partir desses pontos de luz.

Só para termos uma pequena ideia, a dimensão da Via Láctea, é de cerca de cem mil anos-luz de diâmetro, com cerca de 100 bilhões a 400 bilhões de estrelas, contudo diante da imensidão de todo o universo, entendemos que isso não é nada, já para não falar do nosso planeta ou de nós mesmos! Ainda assim, somos capazes de enviar uma sonda que atravessa todo o nossos sistema solar e capta uma foto do nosso planeta.

Neste momento, a Terra gira ao redor do seu próprio eixo a 1.656 km/h e orbita ao redor do Sol a 108 mil km/h.

Já o Sistema Solar orbita ao redor do centro da Via Láctea, a 220 quilómetros por segundo (792 mil km/h) e a Terra só completa essa distância ao redor do centro da Via Láctea a cada 225 milhões de anos. 

No seu livro "Pálido ponto azul", Sagan escreve: "É ali, aquela é a nossa casa. Somos nós e todas as pessoas que amamos, todas as pessoas que conhecemos ou de quem já ouvimos falar. A totalidade das nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões, ideologias e doutrinas económicas, cada caçador e saqueador, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e plebeu, cada casal apaixonado, cada mãe e pai, cada criança esperançosa, inventores e exploradores, cada educador, cada político corrupto, cada "superstar", cada "líder supremo", cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali, naquele monte de poeira suspenso num raio de sol"(…) "Pense nas infindáveis crueldades infringidas pelos habitantes de um canto desse pixel, quase imperceptíveis aos habitantes de um outro canto, o quão frequentemente são os seus desentendimentos, a sua ânsia por se matarem, e o quão fervorosamente se odeiam." (…) "Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não existem indícios de que vamos receber ajuda para nos salvarmos de nós próprios.".

Mas porque é que nos teremos que nos salvar de nós mesmos? Estaremos por ventura em risco de desaparecermos enquanto espécie humana?

E referindo-se à fotografia captada, Sagan continua: "Talvez, não exista melhor demonstração das nossas tolices e vaidades humanas que essa imagem distante do nosso pequeno mundo. Ela realça a nossa responsabilidade para nos tratarmos melhor uns aos outros, e de preservarmos e estimarmos o único lar que nós conhecemos até hoje... o pálido ponto azul."

Será que esta pandemia, veio abalar a nossa ilusão de omnipotência? Qual é o nosso papel e contribuição para as mudança que queremos ver no mundo? Em que medida nos sentimos desafiados a percorrer caminhos que vão muito além de nós mesmos, como foi capaz de o fazer toda a equipa humana de comando da sonda Voyager 1?

Às vezes sinto que andamos demasiados distraídos e focados nas nossas pequenas coisas que compõem a nossa vidinha, esquecendo-nos que somos parte constitutiva daquele monte de poeira suspenso num raio de sol, desvalorizando as oportunidades que nos são dadas a cada momento para contribuirmos para o mundo que idealizamos, que no meu caso e além de muitos outros valores, destaco três: a liberdade, responsabilidade e unidade.

Creio que um dos risco que Sagan se refere no seu livro, esteja relacionado com o facto de andarmos muito distraídos com o que se passa no nosso planeta, desvalorizando a relação entre os povos que o habitam ou no modo como nos tratamos uns aos outros. É que "Para que o mal triunfe basta que os bons fiquem de braços cruzados." já afirmava Edmund Burke e a meu ver, não podia estar mais certo.

De um lado, os bons e distraídos e do outro alguém que está sempre à espreita da mais pequena brecha de oportunidade para usar princípios e valores civilizacionais basilares na nossa sociedade ocidental (para proveito próprio e dos seus) e devolvê-los como adornos reconfigurados e auto-referenciais, nos seus belos discursos políticos.

Enquanto cidadãos, perante a imensidão do universo e perante a demagogia fast-food servida pelos governantes deste pálido ponto azul, replicado neste pixel à beira mar plantado e se não bastasse, assolados por uma pandemia que teima em fixar residência, podemo-nos questionar que sentido tem tudo isto!

A vontade de mandar tudo para as ortigas leva-nos a adotar uma atitude desesperante e niilista perante a moldura social que nos envolve, tornando-nos presas fáceis a propostas políticas que, ou nos aprisionam a ideais antigos e ultrapassamos (para não dizer radicais) que prometem mundos e fundos, (mas que chegando ao poder se esvaziam das suas verdades) ou então propostas vazias e viciadas que nos levam a achar que o nosso voto não irá fazer grande diferença(3/4). 

Viktor Emil Frankl (1905 - 1997)(5), renomeado médico psiquiatra Austríaco, sobrevivente do Holocausto, escritor do livro "Man's Search for Meaning" (N1), Pai da Logoterapia e Análise Existencial e nomeado em 1979 a Prémio Nobel da Paz(6), chama-nos atenção para a realidade do vazio existencial - enquanto forma privada e pessoal de niilismo – como o grande desafio contemporâneo à psicologia, à psiquiatria e à educação (N2).

A sua luta intransigente na proteção do valor do indivíduo frente à força do Estado massificador, bem como a sua oposição incansável à tríade reducionista (isto é, o biologismo, o psicologismo e o sociologismo) e a denúncia do niilismo ideológico neles arraigado, levou Frankl - que apesar de não ser partidário de uma posição política, mas sim de um compromisso político - a pronunciar-se sobejamente para o risco social do totalitarismo e do conformismo.

Segundo Frankl, o Homem de hoje parece, muitas vezes, já nem saber o que quer. Logo, a consequência desse fenómeno parece dividir-se, por um lado, num processo de massificação da sociedade, cuja regra reside no mimetismo, na imitação social e conformista de contentar-se em "fazer o que os outros fazem" – e, por outro, na abertura, numa vulnerabilidade a um poder totalitário: o "fazer o que os outros querem que eu faça". Em suma: temos aí a adoção do conformismo como estilo de vida e a abertura ao totalitarismo como regime político possível (N3).

Para Frankl, é impossível compreender os fenómenos totalitários do século XX sem recorrer ao fenómeno do fanatismo:

O totalitarismo converteu o homem em fanático. Para entendermos o que é o totalitarismo, há que recordar a frase de Hitler: "A política é um jogo onde são permitidos todos os truques". Bem, desde o tempo em que Hitler pronunciou estas palavras até aos dias de hoje, pouco importa saber quais os objetivos inerentes a uma política, pois aquilo que parecer ser o mais importante é dominar os meios que ela usa para alcançar tais objetivos. Por outras palavras: o que importa não é a finalidade, é o estilo da política (N4).

Para Frankl, existem dois estilos em política e dois tipos de políticos. Para uns, o fim santifica os meios, enquanto outros têm plena consciência de que certos meios são capazes de profanar os fins mais puros. De qualquer maneira, não é verdade que o fim justifique o meio; não pode ser verdade, nem que seja pelo facto de que para o homem ao qual todos os meios pareçam bons, tampouco o fim será sagrado (N5). 

Deste modo, fenómenos como a existência provisória, o fatalismo, o coletivismo e o fanatismo – seriam aquilo que Frankl já denunciara em 1950 (N6) de "patologia de nosso tempo", ou seja, os quatro traços psíquicos disfuncionais que iriam tipificar a nossa era. Em todos eles, vemos uma raiz comum: o medo da liberdade e a fuga à responsabilidade. E creio que esta pandemia veio evidenciar isso mesmo.

O psiquiatra vienense, defendeu sempre, que o Homem tem que deixar de ser considerado um autómato, um instrumento de manipulação política, vítima de uma cultura de despersonalização e por conseguinte de massificação, um número ou objeto no meio de tantos.

O ser humano no âmbito político, - continua Frankl - jamais pode ser rebaixado ideologicamente a um mero meio ou instrumentalizado para a consecução de um fim. É típico do fanatismo político, com o pretexto de politizar o homem, atrelar o indivíduo a metas políticas, que não recuam diante da dignidade humana, atacando-a. Ora para Frankl, mais importante do que politizar o homem é humanizar a política (N7) .

Há que salientar que a existência humana de Frankl, ocorre em todo o século XX, permitindo-lhe presenciar o desenvolvimento tecnológico que o define, mas também o retrocesso civilizacional das 2 grandes guerras, resultantes da ascensão dos mais diversos tipos de mecanismos institucionais, políticos, sociais e culturais para desonerar a ação humana do seu caráter de liberdade e de responsabilidade, que procurou transformar o homem numa caricatura manipulável, dócil e apática.

Frankl chegou a afirmar que preferia viver num mundo em que o Homem tenha o direito de fazer escolhas, mesmo que sejam erradas, a ter que viver num espaço político que negue e regule qualquer escolha:

Prefiro um mundo em que, por um lado, um fenómeno tal como um Adolf Hitler possa vir a ocorrer e que, por outro, fenómenos tais como os muitos santos que já viveram, possam também acontecer. Eu prefiro um mundo assim, a um mundo de conformismo e coletivismo totais, ou totalitários, onde o homem seja rebaixado e degradado a um mero funcionário de um partido ou do Estado (N8).

Para Frankl, a promoção da liberdade de escolha pessoal - no mundo líquido de Bauman (7) - passaria pela promoção de um direito universal: o da educação.

Mas para médico psiquiatra austríaco, não se tratava de uma educação assente somente na aquisição de informação ou conhecimento, que mais não é do que educação para a obediência, mas sim, de uma educação para a consciência. Aliás, já nos anos 70, em plena Guerra Fria, Frankl incentivava mesmo à necessidade de eliminação total do educação para a obediência e a implementação da educação da consciência (N9).

Uma educação que deve ir muito além da instrução formal, no sentido da preparação do Homem para a sua responsabilidade individual, de modo a aguçar o apelo da consciência no sentido de ouvir os "dez mil mandamentos relacionados às dez mil situações singulares de que constituem a vida"(N10). Uma consciência vivaz que contribui para que o ser humano tenha a capacidade de resistir tanto ao totalitarismo quanto ao conformismo, pois para Frankl, a nossa consciência é a única que que nos permite dizer "não". E isso encaixa-se bem no papel de uma psico-higiene coletiva, que o pai da Logoterapia tanto julgou pertinente, enquanto objeto de uma psicoterapia social (N11).

Não foi por acaso que Viktor Emil Frankl durante toda a sua existência, repetia incansavelmente, que, em princípio, qualquer nação poderia ainda ser capaz de contribuir para um novo holocausto (N12).

Olhando para aquele pálido ponto azul tão pequeno e frágil, estamos a olhar para nós mesmos, contudo não podemos esquecer que apesar da nossa pequenez e fragilidade, temos a capacidade de fazer a diferença, indo mais além e arriscando. Até agora o Homem foi desafiado a usar à sua inteligência ao serviço do bem comum. Cabe agora cada um de nós, na sua individualidade e unicidade, usar a consciência, para sermos capazes de pensar por nós mesmos em vista desse bem comum!


Susana Silva 

Mediadora de Conflitos Familiares e (Logo)Terapeuta



Notas: 

N1 - "Em Busca de Sentido: Um Psicólogo no Campo de Concentração" num best-seller de alta influência no mundo todo, com quase doze milhões de cópias vendidas, nove milhões das quais, apenas nos Estados Unidos cf. https://www.beacon.org/Mans-Search-for-Meaning-Large-Print-Edition-P1038.aspxe um dos livros mais lidos durante a pandemia cf. https://www.beaconbroadside.com/broadside/2020/05/beacon-books-to-turn-to-during-the-coronavirus-quarantine.html 

N2 - Pereira, Ivo (2019). O pensamento político de Viktor E. Frankl. Revista Logos e Existência, 6 (2), 125-136 .Revista da Associação Brasileira de Logoterapia e Análise Existencial. https://periodicos.ufpb.br/index.php/le/article/view/32363 

N3 - Frankl, V. E (2014). Logoterapia e análise existencial: textos de seis décadas. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

N4 - Frankl, V. E. (1978). Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar.

N5 - ibidem.

N6 Frankl, V. E (2016). Teoria e Terapia das Neuroses. São Paulo. É Realizações [ A primeira edição de "Theorie und Therapie der Neurosen" em alemão, data de 1956 ]

N7 - Frankl, V. E. (1978). Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar.

N8 - Frankl, V. E. (2000). Psicoterapia e Existencialismo - Textos Selecionados em Logoterapia. São Paulo. É Realizações.

N9 - Frankl, V. E (2014). Logoterapia e análise existencial: textos de seis décadas. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

N10 - Frankl, V. E (2011). A Vontade de Sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. São Paulo: Paulus.

N11 - Pereira, Ivo (2019). O pensamento político de Viktor E. Frankl. Revista Logos e Existência, 6 (2), 125-136. Revista da Associação Brasileira de Logoterapia e Análise Existencial. https://periodicos.ufpb.br/index.php/le/article/view/32363 

N12 - Frankl, V. E. (1978). Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar.